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INSPEÇÃO NACIONAL NOS HOSPITAIS PSIQUIÁTRICOS NO BRASIL

“ A população preta, pobre e as mulheres, na verdade, se nós pensarmos em um público que faz o funcionamento dessa instituição existir são esses segmentos. São pessoas que sofrem do ponto de vista social, com as perseguições do racismo, com as perseguições pelo fato de ser mulher, ou pelo fato de ser transexual, pelo fato de ser gay”, diz Costa.

Psicanalista Lucio Costa, perito no Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT)

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Casa de Saúde Santa Mônica, Petrópolis – RJ. A contenção mecânica é prática comum nos Hospitais Psiquiátricos visitados. Na foto à esquerda, usuária negra e emagrecida está deitada com a cintura amarrada à cama, mantendo posição retorcida, possivelmente em razão da limitação de movimentos. Na foto à direita, pessoa idosa encontra-se com cintura amarrada, com o que aparenta ser uma faixa de pano flanelado, vestindo camiseta e blusa de frio, sem calça, de fralda, com as pernas cobertas com cobertor.

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Instituto Américo Bairral de Psiquiatria, Itapira – SP. Sob uma prateleira, encontram-se numerosos dispositivos, aparentemente de couro, revestidos por tecido, usados para fazer contenção mecânica.

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Hospital de Saúde Mental de Messejana, Fortaleza – CE. Pessoa internada vestida com uniforme e amarrada pelo abdômen à cadeira de rodas, come sozinho, com uma pequena colher de plástico, refeição composta basicamente de arroz, sobre mesa, que tem sinais de desgaste e sujidade. 

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Clínica São Francisco, São Luís – MA. Quarto com camas enferrujadas e colchões em péssimo estado de conservação, com espuma deteriorada. Alguns colchões estão sem capa protetora ou com capa rasgada e sem lençóis.

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Hospital Psiquiátrico Teodora Albuquerque, Arapiraca - AL: três fotos de banheiro, uma ao lado da outra, que mostra a precária condição desses espaços, com porta quebrada e dois deles sem porta. 

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Casa de Saúde Cananéia, Vassouras - RJ. A foto mostra em destaque as pernas com feridas que se estendem dos joelhos aos tornozelos,sem curativo. As feridas têm sinais de secreção sanguinolenta, pontos de tecido necrosado, exposição de tecido subcutâneo e ressecamento da pele.

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 Hospital Psiquiátrico de Maringá, Maringá – PR. Na foto abaixo vê-se homem contido na cama da enfermaria, com faixas de tecido lavável, que imobilizam os tornozelos, os punhos, a região torácica, além de amarras na parte distal do braço, próximo ao cotovelo. A pessoa está vestida de shorts, sem camisa e apresenta lesão próxima ao joelho esquerdo, com poça de sangue no lençol. 

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A Inspeção Nacional nos Hospitais Psiquiátricos no Brasil teve início após a ideia difundida pela Coordenação Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde, de que os hospitais psiquiátricos das décadas de 60, 70 não existem mais, e que são completamente diferentes de hospitais psiquiátricos existentes, atualmente, no Brasil. Para averiguar esse discurso, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura iniciou uma agenda para verificar se de fato a narrativa do Ministério da Saúde era verídica.

O Relatório de Inspeção Nacional nos Hospitais Psiquiátricos no Brasil é resultado da Inspeção Nacional e de entrevistas com pacientes e funcionários, realizada em dezembro de 2018, em 40 Hospitais Psiquiátricos, sendo 15 hospitais públicos e 25 privados, com ou sem fins lucrativos, mas que prestam serviços ao SUS, localizados em dezessete estados, nas cinco regiões do país, representando 1/3 das instituições psiquiátricas existentes no país.

Com a participação de 500 especialistas, a inspeção foi realizada em todo território brasileiro simultaneamente no mesmo período de tempo. Foi uma ação interinstitucional organizada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), em parceria com o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). A ação constatou que 82% das unidades mantêm pacientes como moradores em internações de longa permanência. Ao todo, foram encontradas 1.185 pessoas nessa condição. De acordo com os especialistas, a prática fere a Lei Federal nº 10.216/2001, que fixa direitos de pessoas com transtornos mentais.

Com em média 550 páginas, o relatório é o único documento que retrata como funciona as instituições psiquiátricas, hoje, no Brasil, com foco na análise em direitos e com parâmetro de análise da legislação. “Não usamos de referência teórica porque a nossa preocupação era entender o que a legislação diz e o que acontece nessas instituições e quais são as contradições a partir disso”. Diz Costa.

O Relatório de Inspeção denunciou fatos alarmantes, que nos leva a crer que a situação dos hospitais psiquiátricos de hoje, apesar da evolução alcançada pela Reforma Psiquiátrica, continua crítica. Foram encontrados dentro das instituições, segundo o relatório, indícios de tortura, sequestros, cárcere privado, pessoas com deficiência em situações de completo abandono, que sofrem violência nessas instituições. Também foi visto hospitais com lotação máxima. Em 11 dos 40 hospitais visitados foi constatada a falta de camas, onde pacientes dormem no chão ou em condições precárias ou em camas deterioradas e sem lençóis. Costa diz ainda, “Elas são instituições de segregação, instituições de privação de liberdade, não tendo nada a ver com diretrizes da saúde pública brasileira. É interessante apenas que, os 40 hospitais psiquiátricos inspecionados, 16 já tinham sido orientados para descredenciamento do Ministério da Saúde em 2014”.

FORMAS DE PUNIÇÃO E CONTENÇÃO

O relatório fala sobre as formas de punição exercidas dentro das instituições como salas de isolamento e a restrição na participação de atividades. Para Costa, “O hospital psiquiátrico, lá na década de 60, oferecia privação de liberdade e de medicamento, hoje também, oferecem a mesma coisa. Os hospitais psiquiátricos de hoje em nada se difere dos hospitais psiquiátricos da década de 60.”

 O documento também registrou o uso de contenção física e mecânica, como o uso da ameaça em manter o paciente algemado (situação apontada em entrevistas feitas em 15 hospitais), e de medicação para aquelas pessoas que atrapalham a ordem instituída na instituição.

O documento também denuncia situações de graves irregularidades e abusos, presenciado pelos peritos em que pessoas ficam constantemente contidas e o uso da contenção como castigo decorrente de comportamento não tolerado pela equipe de plantão, contenção de maneira inadequada, ausência de prescrição médica, além de pacientes sujos de fezes e urina.

Costa relata cenas que o impressionaram durante a inspeção, como pessoas com deficiência, amarradas em cadeiras de rodas, no tronco, nos braços, nas pernas, em cima de uma cadeira de rodas o dia todo. “Aí, você ia perguntar a um profissional de enfermagem o porquê que aqueles cadeirantes estavam amarrados, e eles diziam que era para os cadeirantes não escorregarem da cadeira, o que é uma resposta completamente absurda, uma vez que existem outras estratégias e recursos”, diz Costa.

TRABALHO FORÇADO

O documento aponta ainda que, “considera-se haver uma parcela das pessoas internadas em hospitais psiquiátricos sujeita à exploração do trabalho durante a internação, inclusive em condições degradantes, motivo pelo qual se recomenda a proibição de quaisquer práticas que se utilizem da mão-de-obra dos usuários durante a internação hospitalar”.

ABUSO SEXUAL

Além das agressões e violências mencionadas no decorrer do relatório, foram denunciadas as graves ocorrências de abuso sexual e de estupro. Em um dos relatos durante a inspeção na Clínica São Francisco, São Luís – MA, “pacientes afirmam ter sofrido violência sexual praticados por profissionais da instituição e por pacientes da Ala Masculina que tinham contato com funcionários que facilitam a entrada na Ala durante o período da noite”. Na Casa de Saúde Santa Mônica - Petrópolis – RJ, “a equipe da inspeção foi informada que já ocorreu abuso por parte de um funcionário à uma paciente, a qual, inclusive, engravidou, e o funcionário foi preso”, diz o relatório.


OUTRAS IRREGULARIDADES ENCONTRADAS DURANTE A INSPEÇÃO:

- Restrições ao contato com familiares: em seis das instituições, pacientes chegaram a ser completamente proibidos de ligar para parentes.

Costa relata que durante a inspeção encontraram, “uma criança de 7 anos, e uma senhora de 106 anos internadas, privadas de sua liberdade. Do ponto de vista científico, do ponto de vista clínico, não se justifica internar uma criança no hospital psiquiátrico. Privaram uma criança no hospital psiquiátrico com o discurso do cuidado. Isso é qualquer outra coisa, menos cuidado de saúde. Não há um caso clínico que justifique com que uma criança seja presa. Eu conheci um senhor que tinha, em um desses hospitais, 60 anos de internação, 60 anos privado de sua liberdade. Em um outro hospital psiquiátrico, em Araras, por exemplo, tem um espaço para velar a pessoa que morre dentro do hospital, ou seja, uma vez que você entra ali, você sequer tem o direito de sair de lá, mesmo morto, sendo muito assustador.”

- Problemas de estrutura: Pelo menos 12 hospitais não tinham alvará ou licença sanitária, o equivalente a 30% do total.

Em 17, havia banheiros sem porta. Outros não tinha chuveiro com água quente ou a papel higiênico.

-  Alimentação precária: Poucas refeições e dieta inadequada.

- Vestimentas: Em três hospitais, foram encontrados pacientes sem camisas, descalços ou completamente nus.

O confinamento continua sendo em sua maioria baseado em preconceito ao gênero e raça,
“ A população preta, pobre e as mulheres, na verdade, se nós pensarmos em um público que faz o funcionamento dessa instituição existir são esses segmentos. São pessoas que sofrem do ponto de vista social, com as perseguições do racismo, com as perseguições pelo fato de ser mulher, ou pelo fato de ser transexual, pelo fato de ser gay”, diz Costa.

Inspetores recomendam no relatório que os hospitais não recebam mais pacientes até correção de todas as falhas encontradas.
 

RECURSOS E INVESTIMENTO EM LEITOS HOSPITALARES

O relatório também aponta que, os recursos públicos, que deveriam ser prioritariamente investidos na estruturação de uma rede de serviços de base territorial e comunitária, próxima ao local onde vivem as pessoas, são disputados politicamente e, muitas vezes, são direcionados para serviços que fortalecem a lógica da segregação e violam direitos humanos.

Segundo dados do Ministério da Saúde, de 2002 à 20013, houve um aumento no investimento em instituições extra-hospitalares, como os hospitais gerais e hospitais psiquiátricos,  sendo o ano de  2005  considerado um marco onde o financiamento público federal em saúde mental nessas instituições, superaram o financiamento destinado aos serviços hospitalares, demonstrando a gradual substituição do modelo hospitalocêntrico por meio da expansão da rede de serviços de atenção comunitária.

   

 

 

 

 

 

O documento também indica, baseado em dados do orçamento do Ministério da Saúde, um marco histórico entre 2017 e 2018,  que mostra crescimento do financiamento em hospitais psiquiátricos em detrimento dos recursos aplicados na rede extra-hospitalar. No ano de 2018, o Ministério da Saúde destinou à Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas o montante de R$ 1.508.146.093,08,13, o que representa um aumento de aproximadamente 5% sobre o orçamento executado no BRASIL. O relatório diz que, “No mesmo período, o aumento do financiamento destinado aos hospitais psiquiátricos cresceu cerca de 26%, considerando os valores correspondentes aos procedimentos informados no Sistema de Informação Hospitalar (SIH/SUS), informalmente conhecido como “a produção hospitalar com base no registro da Autorização da Internação Hospitalar (AIH)”.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

Com isso, constatamos que em 2018 esses hospitais não estavam só funcionando, como ainda recebendo dinheiro do Ministério da Saúde para o seu funcionamento. Esse cenário no Brasil nos aponta que, ainda  hoje, o Governo Federal prioriza o financiamento de instituições psiquiátricas fechadas com a finalidade de atender interesses comerciais da indústria chamada “da loucura”, deixando assim enfraquecidos os serviços comunitários, de centros de atenção psicossocial, de residenciais terapêuticas, instituições que podem substituir o hospital psiquiátrico. “Então, imagina uma pessoa internada há mais de 30 anos sem qualquer vínculo social, familiar, no qual a residência terapêutica representa esse dispositivo de reintegração à sociedade. Isso tudo tem sido substituído por um financiamento em hospitais psiquiátricos.” diz Costa.

Segundo Carezzato, além do alto gasto com a internação, os modelos hospitalares, têm graves problemas com o atendimento, como falta de pessoas na equipe de saúde , falta de médicos e de equipe de enfermagem, prejudicando o atendimento e aceitação de pacientes com grau de doença mais grave, “com isso até não podiam aceitar pacientes que tinham uma comorbidade maior, como esquizofrênico com a questão de drogas, descompensado da depressão, ou descompensado de uma bipolaridade, por exemplo, eles não poderiam ser recebidos lá, por conta de não ter equipe, de uma estrutura para poder fazer esse cuidado eficiente nesses pacientes”, completa.   


REPERCUSSÃO -  ANO 2020


Esse relatório foi publicado em dezembro de 2019 e todas as estruturas de Estado foram oficiadas por ele.Segundo Costa, seria feito o lançamento desse relatório em dez Estados neste ano o que acabou não acontecendo devido à pandemia do coronavírus. Ele diz que,” o Ministério da Saúde tem adotado uma postura de não diálogo, uma postura de não reflexão sobre àquilo que foi encontrado. Então, continua financiando estas instituições, e até agora não se manifestou sobre aquilo que foi encontrado. Da mesma forma, vale dizer que o Conselho Federal de Medicina, o Conselho Federal de Medicina que deveria acessar esse relatório e adotar providências, ainda que fosse para realizar novas inspeções para dar uma resposta para sociedade, simplesmente, o Conselho Federal de Medicina ignora a existência do relatório. Então, a nossa percepção é que existe um funcionamento integrado entre algumas instituições cujo interesse não é a saúde pública, cujo interesse são outros que precisam de mais olhares para serem compreendidos.”

Nós, do site a Loucura dos Normais, entramos em contato e  pedimos esclarecimento ao Médico Psiquiatra Antônio Geraldo da Silva, Presidente da APAL - Associação dos Psiquiatras da América Latina, mas ele nos respondeu com um arquivo em pdf contendo informações sobre as DIRETRIZES PARA UM MODELO DE ATENÇÃO INTEGRAL EM SAÚDE MENTAL NO BRASIL - 2020, e afirmou também não concordar com tudo escrito ali, com a justificativa de que as diretrizes foram escritas por vários profissionais da área com opiniões diferentes.

Tentamos contato com o psiquiatra, Quirino Cordeiro Jr, Secretário de Cuidados e Prevenção às Drogas, que foi coordenador-geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde, e que trabalhou na construção da nova Política Nacional de Saúde Mental e das mudanças nas diretrizes da Política Nacional sobre Drogas mas não obtivemos resposta.

Também entramos em contato com a assessoria de Imprensa do Ministério da Saúde e não obtivemos resposta.


Diante de todos os levantamentos e relatos publicados por essa matéria jornalística, até o presente momento o Sistema Único de Saúde (SUS), continua sendo o melhor caminho para o tratamento de pessoas com transtornos mentais, de modo que defender essa instituição é defender direitos e diretrizes mais humanizadas. Costa finaliza dizendo, “ A defesa do SUS é a defesa de uma política mental que leva em consideração a garantia de direitos, algo que hoje não acontece, principalmente no financiamento público do Ministério da Saúde.”

Os  trabalhos desenvolvidos nos CAPS  são de suma importância na reinserção social do usuário, mas infelizmente a falta de investimento do governo tem criado limitações como a estrutura física decadente e a falta de material adequado para a execução das atividades. Carezzato conclui falando da importância da reinserção social que o CAPS financia, “Os CAPS e assistências terapêuticas, eles estão tentando trazer essas pessoas de volta para algum grau de cidadania. Os CAPS têm um programa bastante voltado para a reabilitação psicossocial, para reabilitação da pessoa e a reinserção social dessa pessoa na comunidade”.   

A implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) significou um grande avanço no processo de descentralização da saúde. A Lei nº 8080 de 19 de setembro de 1990, que regulamentou o Sistema Único de Saúde (SUS), assegura o direito universal à saúde, bem como a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes. A implantação do SUS se tornou um grande marco da assistência à saúde e é resultado de discussões e luta por políticas públicas de saúde mental que buscam por direitos e que visam acabar com o modelo "hospitalocêntrico". Kokay fala sobre a necessidade de criar políticas públicas em prol da saúde mental.“À medida que você fortalece os CAPS, e ao mesmo tempo fortalece a autonomia, fortalece a organização, e as pessoas podem estar articulando, à partir do CAPS, o conjunto de políticas públicas de geração de renda, políticas de expressões culturais, o conjunto das políticas públicas é que precisam ser articuladas, à partir do próprio CAPS. Nós precisamos construir uma comissão da memória e da verdade para a saúde mental no Brasil, para que a gente identifique os nossos holocaustos e que a gente não permita o retrocesso.”

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Proporção de recursos federais destinados à saúde mental em serviços hospitalares e em serviços de atenção comunitária/territorial (Brasil, dez. 2002 a dez. 2013)

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Proporção do financiamento federal destinado a hospitais psiquiátricos em relação ao orçamento global destinado à saúde mental, no período 2017-2018

Fonte: Inspeção Nacional de Hospitais Psiquiátricos, 2019.

Fonte: Ministério da Saúde, 2015.

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