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APÓS 30 ANOS DE

LUTAS DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL OS AVANÇOS ESTÃO EM RISCO?

“Hoje, no Brasil, temos duas organizações que representam o interesse dessa categoria empresarial, que é a Associação Brasileira Psiquiatria e o próprio Conselho Federal de Medicina, sendo os grupos que reverberam a defesa da atenção voltada em hospital psiquiátrico”, diz Costa

Médico Psiquiatra Fabio Carezzato formado pela USP - Fala sobre os casos em que a internação é importante.

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Lucio Costa

Psicanalista Lucio Costa, perito no Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT)

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Aparelhos de eletrochoque no Museu da Loucura Barbacena, em Minas Gerais.

Foto: FHEMIG/ Divulgação

Momento em que administram o eletrochoque - Trecho do Filme - Nise o Coração da Loucura 2016 

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Médica psiquiatra Nise Magalhães da Silveira

O cenário atual nos mostra que os avanços conquistados pela Reforma Psiquiátrica estão ameaçados pelo investimento em assistência hospitalar. Mesmo com o sistema de segregação sendo substituído por um comportamento de cuidado e liberdade comunitária, e defesa da cidadania das pessoas deficientes, a internação volta a ganhar força, e o atendimento toma um rumo inverso do que estava sendo feito pela Política Nacional de Saúde Mental, por meio da desospitalização. Os grupos que defendem a segregação continuam em atividade.“O modelo de atenção passou por processo de transformação, mas esses grupos, principalmente os empresariais, sempre estiveram no cenário, reivindicando inclusive espaço, porque espaço significava lucro, e isso é fundamental e importante para se marcar que o objetivo da segregação não é para cuidar, o objetivo da segregação é para lucrar,” diz Costa


No período de dezembro de 2016 a maio de 2019, foram editados cerca de quinze documentos normativos, dentre portarias, resoluções, decretos e editais, originando a nota técnica 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS que veio a se chamar de “Nova Política Nacional de Saúde Mental”. Esse documento prevê, entre outros pontos, a internação em hospitais psiquiátricos e o financiamento para compra de máquina de eletrochoques. Kokay denuncia ser de interesse da rede privada o financiamento de eletrochoque:“O movimento dessa nova política, é o movimento de favorecer o choque elétrico, em grande parte, como não tem mais na rede pública, é da iniciativa privada. Então, eles estão favorecendo as clínicas que dão choque elétrico, porque o Estado vai pagar para essas clínicas."


Uma das mudanças que causaram preocupação foram os novos investimentos em hospitais psiquiátricos.  Segundo o Relatório de Inspeção Nacional nos Hospitais Psiquiátricos no Brasil, no final de 2017, a Comissão Intergestores Tripartite (CIT), instância de articulação e pactuação que atua na direção nacional do SUS, proibiu a ampliação de leitos em hospitais psiquiátricos, que, atualmente, representa cerca de dezenove mil leitos. Mesmo que a medida reforce a base comunitária, apontando para uma progressiva diminuição desses estabelecimentos, a CIT redefiniu os componentes da RAPS, neles incluindo o próprio hospital psiquiátrico. É o que se verifica na Portaria GM/MS n. 3.588, de 21 de dezembro de 2017, que chancela o reinvestimento na instituição asilar ao incluir, como novo ponto de atenção da RAPS, o hospital psiquiátrico especializado”, que segundo a Associação Brasileira de psiquiatria (ABP), são serviços destinados a atender pacientes que necessitem de cuidados intensivos,  e de internação prolongada (superior a 30 dias).
 

Por absorver maior parte do investimento financeiro do governo, a política de hospitalização tem como maior consequência, o enfraquecimento do CAPS, “o redirecionamento do financiamento de diversos programas e estratégias de cuidado de saúde mental, principalmente, esses mais centralizados, como os CAPS, as ações de prevenção, os postos de saúde, para um investimento em, novamente, dispositivos de internação”, diz Carezzato.

Ele também afirma que isso vai na contramão do que tem acontecido no mundo, em que o investimento tem sido cada vez maior em prevenção, e em ferramentas mais regionalizadas, mais centralizadas, de forma que se pode fazer o acompanhamento das pessoas ao longo de suas vidas e ajudá-las em uma reinserção na comunidade.

As medidas propostas em relação ao tratamento da saúde mental criadas em fevereiro de 2019, pelo Ministério da Saúde, também nos chamaram a atenção, pois previram investimentos para compra de aparelhos de eletrochoque, internação de crianças em hospitais psiquiátricos e criação de mais vagas para internações visando o tratamento de doenças mentais.
Para Costa, essas medidas são de interesse de um grupo de empresários ou até mesmo de médicos que administram tais instituições e que lucram com esse investimento. Na década de 90, uma média de 80% do recurso público da União, da política de saúde mental, era destinado para hospital psiquiátrico, sendo um montante significativo de recurso público, falando-se de milhões e milhões de reais investidos em hospitais psiquiátricos, na sua maioria, privado.  De acordo com Costa até 2016, esse grupo, principalmente de médicos que são donos de hospitais psiquiátricos, estavam fora da estrutura do Estado, e de 2016 para cá, esses grupos se apropriam do Estado, e voltam a gerir a política pública, de acordo com seus interesses.
“Hoje, no Brasil, temos duas organizações que representam o interesse dessa categoria empresarial, que é a Associação Brasileira Psiquiatria e o próprio Conselho Federal de Medicina, sendo os grupos que reverberam a defesa da atenção voltada em hospital psiquiátrico”, afirma Costa.
 

As Diretrizes para um modelo de atenção integral em saúde mental no Brasil 2020, elaborada pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), “discorda da construção de modelos assistenciais em saúde mental centrados em um único serviço, seja qual for. A saúde mental exige serviços diferentes para necessidades diferentes”. Segundo eles a Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde por décadas investiu na desospitalização sem o concomitante investimento nos equipamentos complementares, nem na qualificação de serviços hospitalares e extra-hospitalares, o que está levando a uma desassistência generalizada.

Já Carezzato, acredita na importância da hospitalização, em casos cuja pessoa possa oferecer riscos, “Você vai internar um paciente no momento em que ele tiver com um risco aumentado de suicídio, ou com um risco aumentado de agressão aos outros, ou risco aumentado de prejuízo à sociedade, ou a ela mesma". Para ele é possível manter a hospitalização dentro de critérios específicos, no prazo máximo de três meses, com tratamento especializado e medicação adequada.

 

ELETROCHOQUES

Segundo fatos históricos, os eletrochoques foram usados no passado, como forma de tortura, punição ou imobilização, levando muitos à morte. Com a proposta sugerida pela “Nova Política Nacional de Saúde Mental” prevendo o financiamento de aparelhos de eletrochoque, levanta-se o alerta.  O eletrochoque se chama na verdade eletroconvulsoterapia e ainda é comum o uso em tratamento de pacientes com problemas mentais mesmo tendo sua eficácia duvidosa. Carezzato, acredita no tratamento quando indicado para situações graves, e diz ter comprovado sua eficácia durante seu trabalho:"É um tratamento que tem a eficácia comprovada, com as indicações precisas para situações muito graves, para catatonias, às vezes, para quadros psiquiátricos graves em pacientes grávidas que não podem tomar altas doses de medicação e que esse tratamento com eletroconvulsoterapia tem a sua eficácia, podendo salvar uma vida, fazendo a pessoa melhorar. Isso acompanhei em minha residência médica no Hospital das Clínicas em que vários pacientes se beneficiaram da eletroconvulsoterapia”.

Hoje, há uma normatização pelo Conselho Federal de Medicina sobre a prática eletroconvulsoterapia ou eletrochoque, assentando que nenhum outro profissional pode aplicar a eletroconvulsoterapia, senão um profissional da medicina e em ambiente hospitalar. A Resolução CFM n. 1640/2002 fala sobre a importância deste método terapêutico e regulamenta sua aplicação bem como os cuidados que devem ser utilizados durante o tratamento. Segundo Costa, o tratamento ainda gera conflitos,“essa resolução não aprofunda as reflexões sobre, inclusive, como deve ser aplicado, os impactos que significa isso em determinados casos. O fato é que, hoje, não tem um consenso científico sobre a eletroconvulsoterapia”.
 

A suspeita que se levanta é que o procedimento esteja trazendo muito lucro aos hospitais devido ao seu elevado custo no tratamento, segundo Costa é recomendado pelos médicos 12 sessões de eletroconvulsoterapia no valor em média, de R$ 1.000,00. Isso quer dizer que a família deve disponibilizar 12 mil reais em função das 12 sessões. “Isso é uma outra camada do mercado da loucura muito lucrativa porque é possível produzir muito dinheiro com essa estratégia, que, a meu ver, é uma estratégia que reduz a complexidade do que é ter saúde mental a uma aplicação de um procedimento de eletroconvulsoterapia”, diz Costa.

Segundo Kokay, quem sofre com esse desmonte, com esse desfinanciamento é a instituição do CAPS, que fica desassistido pelo governo e impedido de um maior crescimento.“O financiamento de choque elétrico, o financiamento dos leitos psiquiátricos, e ao mesmo tempo, o desfinanciamento da rede de atenção psicossocial dos CAPS, dos serviços substitutivos, são formas sorrateiras de corroer a política que nós construímos, que se traduziu na reforma psiquiátrica de 2001,” diz ela.

Kokay também relembra a psiquiatra alagoana Nise da Silveira que não conseguia aceitar essas práticas. Nise Magalhães da Silveira nasceu em 1905, em Alagoas e ajudou a escrever e revolucionar a história da psiquiatria no Brasil e no mundo. Ela ficou conhecida por humanizar o tratamento psiquiátrico e ser contra a técnicas agressivas de tratamentos como eletrochoque, camisa de força e isolamento. Ela acreditava no tratamento ocupacional, sendo pioneira no método, e utiliza atividades recreativas no tratamento de distúrbios psíquicos."Nós estamos falando do país da Nise da Silveira, que se recusou a dar um choque elétrico. O choque elétrico é uma sensação de dor tão profunda que ela vai fazer com que as pessoas busquem sair do próprio transtorno. Então, o choque elétrico não tem que existir, e ele está sendo financiado. Os Hospitais psiquiátricos e os leitos psiquiátricos não têm que existir," diz Kokay.

A Associação Brasileira
de Psiquiatria (ABP),

“discorda da construção
de modelos assistenciais
em saúde mental centrados em um único serviço,
seja qual for. ”

Filme Completo - Nise o Coração da Loucura 2016

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